Está na hora de aposentar a Gestalt?

A contribuição da Gestalt à psicologia é valiosa. Mas a Gestalt deixou de entregar aquilo que promete: ser uma teoria comprovada que facilite a vida dos designers gráficos.

Ricardo Martins, autor AutorRicardo Martins Seguidores: 86

Está na hora de aposentar a Gestalt?
Opiniões:
5
Votos:
9

A contribuição da Gestalt para a psicologia contemporânea é valiosa. Suas ideias foram o ponto de partida para vários conceitos psicológicos, nos convidando a continuar investigando como conseguimos perceber o mundo que nos cerca. Embora a Gestalt tenha sido um passo importante na história da ciência da psicologia e do próprio design gráfico, ela deve ser vista como tal: história. Já faz tempo que a Gestalt deixou de entregar aquilo que promete: ser um conjunto de princípios psicológicos comprováveis que facilitem a vida dos designers.

A Gestalt é uma teoria amplamente ensinada nas faculdades e livros de design gráfico, há quase 90 anos. Visto que é importante que designers saibam como as pessoas provavelmente irão interpretar suas mensagens visuais, a Gestalt surgiu como um conjunto de explicações que mostrariam como as pessoas reagiriam a essas mensagens. No entanto, hoje, aproximadamente 100 anos depois do surgimento da Gestalt, ela ainda não conseguiu fazer isso.

Professores, alunos e profissionais tentam entender a Gestalt e aplicá-la em projetos gráficos, mas essa tarefa é mais difícil do que parece. Recentes avanços no estudo do cérebro humano demonstram que reduzir o funcionamento da mente a algumas poucas «leis» ou «regras», ainda está muito longe de nos explicar exatamente como é que o cérebro consegue dar sentido às cores, formas, sons, cheiros e elementos táteis que nos cercam.

Alguns designers não se contentariam com uma crítica superficial à Gestalt, então eu cito a seguir os argumentos de cientistas que dominam esse assunto e fornecem mais detalhes sobre porque a teoria da Gestalt não consegue ajudar os designers gráficos como deveria.

Uma nova perspectiva sobre a Gestalt

Segundo o autor Johan Wagemans e seus colegas pesquisadores, a Gestalt possui algumas fraquezas:

  • NÃO LEVA EM CONTA A EXPERIÊNCIA PRÉVIA DA PESSOA: A Gestalt defende que as leis da percepção nascem com o ser humano ao invés de serem aprendidas com o passar dos anos. No entanto, estudos recentes com observadores adultos mostraram que a experiência passada pode influenciar a forma como percebemos a diferença entre a figura e o seu fundo. Peterson & Skow-Grant (2003) também compartilham dessa crítica. Wertheimer, um dos fundadores da teoria Gestalt também falou sobre a influência da «experiência passada», mas o que ele disse não tem o mesmo sentido utilizado por outras correntes da psicologia. Para ele, a experiência prévia da pessoa não consegue alterar os princípios gerais da percepção (Luccio, 2011), mas não é isso que vemos acontecer na prática, quando mostramos uma imagem ambígua (com mais de uma interpretação) para diferentes pessoas.
  • SÓ FUNCIONA NA TEORIA: A teoria gestaltista nem sempre se verifica na prática.
  • BASE FRÁGIL: Um dos pilares da Gestalt é a teoria do campo elétrico, teoria que foi considerada morta e enterrada em 1950.
  • PRINCÍPIOS VAGOS E CONFUSOS: A Gestalt oferece meras demonstrações, usando estímulos muito simples ou confusos, formulando leis com pouca precisão, ou adicionando «leis» para cada fator que parecesse ter alguma influência na percepção. Para evitar criar leis demais foi proposta uma lei principal, chamada de Lei da Pragnanz, mas sua explicação foi deixada «confusa» de propósito: «a organização psicológica será sempre tão BOA quanto as condições permitirem». Sobre esse princípio, Bruce & Green (1990) escreveram: «algumas das suas “leis” de organização perceptiva hoje parecem vagas e inadequadas. O que significa uma «boa» ou «simples» forma, por exemplo?». Os próprios gestaltistas admitem que este conceito é subjetivo (Koffka, 1975).
  • NÃO INDICA QUAIS LEIS SÃO MAIS FORTES: Todorovic (2008) explica ainda que, embora a Gestalt seja coberta de alguma forma na literatura científica como em Kubovy & van der Berg (2008), ainda resta detalhar como é que diferentes princípios gestaltistas interagem entre si e quais irão ser mais fortes em quais situações.
  • FOCO NO 2D: Muito do que era a teoria original da Gestalt se baseia na percepção bidimensional, no entanto nossa percepção é tridimensional.
  • DESPERDÍCIO DE TEMPO: Além dessas críticas, o psicólogo Skinner (1977) também questiona a base filosófica da Gestalt, chamada de teoria representacional ou «teoria da cópia» (a ideia de que nossa mente faz cópias do mundo), afirmando que fazer isso seria um desperdício de tempo para o cérebro.
  • TRADUÇÃO INCORRETA: Somando a essas discussões, Dewey (2004) faz ainda uma declaração bastante séria: O conceito principal repetido nas aulas de Gestalt está errado («O todo é maior do que a soma das partes»). Foi traduzido incorretamente do alemão para o inglês, algo que Kurt Koffa, um dos fundadores da Gestalt, criticou severamente. No seu texto original estava dito que «O todo é diferente (ou independente) da soma das partes», no sentido de que o todo tem uma existência própria, que não depende das partes. Koffka não gostou da tradução e corrigia os alunos que usavam a palavra «maior» ao invés de «diferente» (Heider, 1977). Segundo Koffa, não se trata de um princípio de «soma». O que o texto original da Gestalt queria dizer é que o todo tem uma existência independente no sistema perceptivo.
  • NÃO PRECISAMOS DE UMA LEI PARA VER O ÓBVIO: Além disso, os fundamentos propostos pela Gestalt se baseiam em conceitos relativamente óbvios. Rock (1975) afirma que os princípios da Gestalt são baseados na nossa experiência com coisas e suas propriedades: objetos no mundo geralmente estão localizados na frente de algum fundo (figura fundo), tem uma textura diferente da textura desse fundo (similaridade), são feitos de partes que estão perto umas das outras (proximidade), se movem como um todo (destino comum), tem contornos fechados (fechamento) e esses são contínuos (continuidade) (Todorovic, 2008).
  • NÃO É CITADO COMO HISTÓRIA: Curiosamente, o livro História do Design Gráfico, de Philip Meggs, uma das principais referências sobre a evolução da profissão de designer gráfico, não cita a palavra Gestalt nem uma única vez e faz menção à estudos de percepção apenas na história de Peter Behrens e a Nova Objetividade (Meggs, 2009). É intrigante que um conceito considerado central no ensino do design sequer apareça num livro importante de história da atividade.
  • EMPRESTA CONCEITOS DA FÍSICA PARA SER SÉRIA: Os fundadores do gestaltismo empregam metaforicamente termos das ciências exatas, como a Física, deslocados de seus sentidos e contextos originais, para conferir ar de seriedade a argumentos romântico-teológicos (Santos, 2014).

Conclusão

Percebe-se portanto que a Gestalt tem deficiências sérias que merecem atenção e uma reflexão por parte dos designers gráficos, que muitas vezes a aprendem como sendo uma teoria livre de problemas.

O que as evidências apontam é que a teoria da Gestalt nem sempre se verifica na prática, que ela minimiza ou ignora o papel da experiência passada sobre a percepção, se baseia em princípios considerados vagos ou subjetivos, se concentra mais nos estímulos visuais do que nos comportamentos resultantes, focam em representações 2D sendo que o mundo é 3D, consideram o cérebro uma mera máquina de representação do mundo, passando até por problemas de tradução da teoria original em alemão para o inglês.

Em resumo, há ainda um grande número de problemas sobre a Gestalt que precisam ser resolvidos. Talvez seja o momento oportuno para questionar criticamente – ou mesmo aposentar – o uso da Gestalt.

O que você acha? Compartilhe sua opinião agora!

Opiniões:
5
Votos:
9

Colabore com a difusão deste artigo traduzindo-o

Traduzir ao espanhol Traduzir ao inglês Traduzir ao intaliano

 

Referências

  • Almeida, J.; Carvalho, H; Gongora
  • Andery, M.; Micheletto, N. e Sério, T. (2009) Definição de comportamento. Em Andery, M; Micheletto, N. e Sério, T. (Eds.) Comportamento e causalidade, 6. São Paulo: Editora PUC SP.
  • Arnheim, R. (1980) Arte e Percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira.
  • Barry, A. (1997) Visual Intelligence. Perception, Image and Manipulation in Visual Communication. Albany: State University of New York Press.
  • Bock, A., Furtado, O e Teixeira, M (2007) Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. São Paulo: Saraiva.
  • Bruce, V. e Green, P. (1990). Visual Perception – Physiology, Psychology and Ecology. Lawrence Erlbaum Associates: UK.
  • Bruner, J.; Goodnow, J.; Austin, G (1956). A study of thinking. Piscataway, NJ: Transaction Publishers
  • Buerdek, B. (2002) Global Gestalt Competence. Design News. Magazine for Industrial Design (Tokyo), nº 260, Winter.
  • Chalmers, D., French, R. e Hofstadter, D. (1991) High Level Perception, Representation and Analogy: A Critique of Artificial Intelligence Methodology. CRCC Technical Report 49.
  • Cordeiro, M. (2010) A tessitura da crítica bejaminiana: entre os românticos e Goethe, 2010. Dissertação (Mestrado em Estética e Filosofia da Arte).Programa de pós-graduação em Filosofia. Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto.
  • Day, W. (1983) On the Difference between Radical and Methodological Behaviorism. Behaviorism, Vo. 11, n. 1 (Spring 1983) pp 89-102.
  • Dewey, R. (2004) Psychology, an introduction. Wadsworth Publishing Company, Boston, MA.
  • Epstein, W. (1988) Has the time come to rehabilitate Gestalt theory? Psychological Research 50:2-6.
  • Gibson, J. J. (1966). The Senses Considered as Perceptual Systems. Boston:Houghton Mifflin.
  • Gregory, R. (1970). The Intelligent Eye. London: Weidenfeld and Nicolson.
  • Harpaz, Y. (1996) Human Cognition in the Human Brain. Disponível em http://human-brain.org/human-brain-index.html. Acessado em 15 de agosto de 2015.
  • Heider, G. (1977). More about Hull and Koffka. American Psychologist, Vol. 32 (5), 383.
  • Hoffman, D. (2000) Visual Intelligence. How We Create What We See. New York: W. W. Norton & Company.
  • Kepes, G. (1995) Language of vision. New York: Dover Publications.
  • King, B. (2009) Max Wertheimer and Gestalt Theory. New Jersey: Transaction Publishers.
  • Koffka, K. (1975) Princípios de psicologia da Gestalt. São Paulo: Cultrix.
  • Landim, P. (2010) Design, empresa, sociedade. São Paulo: Cultura Acadêmica.
  • Luccio, R. (2011) Gestalt Psychology and Cognitive Psychology. Humana.Mente Journal of Philosophical Studies. Vol. 17, 95-128.
  • Marr, D. (1982) Vision. São Francisco: WH Freeman & Co.
  • Matos, M. (2008) Diferença entre o behaviorismo metodológico e o radical. Disponível em http://www.ufrgs.br/psicoeduc/behaviorismo/behaviorismo-metodologico-e-behaviorismo-radical/ Psicologia - Palestra no II Encontro da ABPMC. Acessado em 15 de agosto de 2015.
  • Meggs, P. e Purvis, A. (2009) História do Design Gráfico. São Paulo: Cosac Naify.
  • Möller, R. (1999) Perception Through Anticipation. A Behaviour-Based Approach to Visual Perception. Em«Understanding Representation in the Cognitive Sciences». Editado por Peschl, R e Stein, A. Kluwer Academic/Plenum Publishers, New York.
  • Moreira, M.; Medeiros, C. (2007). Princípios básicos de análise do comportamento. São Paulo: Artmed.
  • Neves, C. & Rocha, J. (2013) The contribution of Tomas Maldonado to the scientific approach to design at the beginning of computational era. The case of the HfG of Ulm. Future Traditions (1st eCAADe Regional International Workshop Proceedings) University of Porto.
  • Peterson, M & Skow-Grant, E. (2003). Memory and learning in figure-ground perception. Em B. Ross & D. Irwin (Eds.) Cognitive Vision: Psychology of Learning and Motivation, 42, 1-34.
  • Ranjan, M (2005) Lessons from Bauhaus, Ulm and NID: Role of Basic Design in PG Education. Scholastic Papers from the International Conference, DETM 2005. National Institute of Design. Ahmedabad.
  • Santos, M. (2014) Metafísica romântica (verniz científico): sobre a pertinência da Gestalt como teoria da comunicação visual. Revista da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS.v. 20, n. 1 – Jan/Jun 2014.
  • Skinner, B. (1972). Tecnologia do ensino. São Paulo: Herder.
  • Skinner, B. (1982). Sobre o Behaviorismo. São Paulo: Cultrix.
  • Todorovic, D. (2008) Gestalt Principles. Scholarpedia, 3(12):5345.
  • Wagemans, J; Elder, J; Kubovy, M; Palmer, S; Peterson, M; Singh, M e Heydt, R. (2012) A Century of Gestalt Psychology in Visual Perception I. Perceptual Grouping and Figure-Ground Organization. Psychology Bulletin November 138 (6): 1172-1217.
  • Wahler, R. (1988) The typographic contribution to language. Tese de Doutorado submetida ao Departamento de Tipografia e Comunicação Gráfica da Universidade de Reading.
Código QR para acesso ao artigo Está na hora de aposentar a Gestalt?

Este artigo não expressa a opinião dos editores e responsáveis de FOROALFA, os quais não assumem qualquer responsabilidade pela sua autoria e natureza. Para reproduzi-lo, a não ser que esteja expressamente indicado, por favor solicitar autorização do autor. Dada a gratuidade deste site e a condição hiper-textual do meio, agradecemos que evite a reprodução total noutros Web sites.

Baixar PDF