A difícil arte de dizer não
Ainda é necessário demonstrar o valor da criação para a economia tradicional.
AutorRique Nitzsche Seguidores: 273
EdiçãoAlvaro Sousa Seguidores: 16
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Estou voltando a um assunto que se recusa a evoluir, um assunto constrangedor que sempre volta à tona, ano após ano: o das concorrências especulativas. Como os vícios crônicos das atividades humanas, ninguém sabe bem como se espalhou e se tornou uma praga. Mas essa tendência continua por aí, assombrando as empresas da indústria criativa, particularmente as de design.
Uma empresa está desenvolvendo um projeto. Em algum momento a equipe responsável chegará a um impasse. Não existe dentro da empresa um profissional disponível para dar o próximo passo: gerar uma solução criativa para o problema. A equipe faz um briefing do assunto ainda não resolvido e vai ao mercado procurar um profissional qualificado. Em vez de escolher um único profissional, a empresa distribui o briefing a diversos candidatos, solicitando-lhes uma solução diferenciada para seu problema. Cada um apresentará uma solução própria. Entre as diferentes hipóteses, a empresa escolhe uma, pagando ao seu autor. Aos outros agradece (ou não) o trabalho gratuito. Isso é concorrência especulativa.
No final de 2012, um artigo simpático chamado «Três garrafas, por favor!», escrito por Tulio Filho no site FOROALFA, abordou o assunto com humor.1 «Imagine a cena. Você entra em um restaurante e faz o seu pedido para o garçon. Pede então a carta de vinhos e escolhe não um, mas três dos principais vinhos da casa. O garçon não entende bem a situação, mas volta à mesa com as três garrafas. Você então pede que as abra. Ele ainda sem entender, abre. Você então pede para prová-las. Ele serve desconfiado. Após provar os três vinhos, você avisa ao garçon que gostou mais do terceiro e que vai ficar com ele. Ele questiona sobre as outras duas garrafas. Você responde que irá devolvê-las e que pagará apenas pela que gostou».
Em um artigo de 2001, abordei esse assunto. Na época, diverti-me com a hipótese de um freguês ousado, ao entrar numa casa de prostituição, solicitar grátis a prática profissional das meninas disponíveis para só pagar à que ele gostasse mais. Todos nós sabemos o que elas iriam dizer ao irreverente rapaz.
Mais de dez anos depois, Tulio chamou essa situação de surreal, dramática e extremamente nociva. E fez uma pergunta: Será que é uma prática digna? Bem, todos nós, inclusive os praticantes do ato nocivo, sabemos que não é uma prática digna. Ninguém se sente digno ao fazer isso. Dignidade é uma qualidade moral que merece respeito. Uma atitude digna gera consciência de autoestima e consciência do próprio valor. Tulio sugere que uma possível solução seria a transformação das concorrências especulativas em pagas, como a experiência da marca da Olimpíada de 2016 recentemente realizada. Ele acredita que o momento é favorável às mudanças porque «as instituições estão se mobilizando contra a corrupção», começando pelo judiciário. Tulio acredita que é o momento para a construção um «documento de boas práticas».
Não é a primeira vez que leio sobre tentativas de cobrança para as concorrências criativas. Em maio de 2012, uma instituição representativa de profissionais da indústria criativa se manifestou. Kito Mansano (presidente da AMPRO – Associação de Marketing Promocional), em carta enviada aos anunciantes, tentou orientar o processo de contratação de agências.2 Ao invés das concorrências especulativas, por que não uma remuneração simbólica de R$ 5 mil para cada concorrente? A notícia também mencionava a busca por respeito profissional.
Quanto a documentos de boas práticas para designers, existe o Caderno de Ética no Design da ADG Brasil, editada em 2004, com uma versão livre recentemente lançada em vídeo no YouTube.3 Na publicação da ADG foi citado o meu artigo «A Difícil Arte de Dizer Não», apesar te sido reescrito e simplificado. No artigo original, havia ainda um subtítulo: «Pensamentos sobre a dignidade do mercado [de design]». A busca por dignidade e ética na economia criativa é antiga, sendo já discutida há muito mais do que uma década.
Se ser digno é obter merecimento por ações éticas, por que essa prática viciada se eternizou? Bem, talvez a resposta seja própria para um filósofo responder. Michael Sandel, professor de Harvard, discute os limites éticos no livro «O que o dinheiro não compra».4 Sandel diz que está na hora de abrir um debate amplo sobre o processo que, nas palavras dele,
«“sem que percebamos, sem que tenhamos decidido que é para ser assim, nos faz mudar de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado”. A economia de mercado é o corolário da democracia no campo das atividades produtivas… Mas o que é uma “sociedade de mercado”?... É uma sociedade em que os valores sociais,… até os direitos cívicos podem ser comprados e vendidos. Em resumo, uma sociedade em que as relações humanas tendem a ser mediadas apenas pelo seu aspecto econômico».
É sutil a diferença. Sandel diz que o pensamento econômico invadiu esferas a que ele não pertence, quando, por exemplo, nos referimos aos bens imateriais e complexos como são as relações humanas.
Tenho algumas reflexões sobre as concorrências especulativas para projetos de design. Estas práticas existem por uma questão de falta de perceção de valor econômico do exercício do design, ao que se acrescenta a evolução da «sociedade de mercado». Tudo é uma questão de valor.
De início, para baralhar o tema, o conceito de design é amplo demais. Como é um assunto tão omnipresente nas manifestações humanas, tem-se dificuldade em compreender as suas fronteiras. Design é uma forma de pensamento, um processo mental usado para tomadas de decisões. Os seres humanos praticam design desde sempre, antes mesmo de nos autorreconhecermos como homo sapiens. Porém, devido à dificuldade em entender os processos (mesmo os mais simples), as pessoas tendem a perceber o design somente como o resultado final obtido.
Nas concorrências especulativas existem, simultaneamente, o contratante (entidade que realiza a concorrência) e os contratados (criadores que aceitam concorrer). O contratante ignora o valor de um projeto de design porque não avalia a sua significância na sobrevivência da sua empresa. Poucas empresas compreendem o valor do processo do design estratégico. Então, o contratante realiza uma concorrência porque, para ele, o design é uma atividade compartimentada, separada do seu processo estratégico e, por isso, totalmente controlável, a ponto de poder ser executada por qualquer profissional que se submeta à concorrência especulativa. Depois decide o vencedor, como se estivesse a escolher papéis coloridos colocados na parede.
Do outro lado, estão os designers que se submetem à concorrência. Embora eles saibam da importância do design na economia, eles padecem de uma realidade crônica. Nós, designers, temos dificuldade de construir um diálogo íntimo com o universo financeiro. A sociedade do design precisa falar fluentemente a linguagem dos homens de negócios para que eles entendam o profundo valor do design estratégico. Embora existam autores neutros que insistem que os executivos precisam se transformar em designers, isso não acontecerá espontaneamente. Somos nós, os designers que costumamos a transitar em diferentes disciplinas, quem devemos assumir a empreitada de construir o verdadeiro valor do design. A advocacia e a medicina conseguiram construir um código de valores para seus profissionais. Pelo menos, eles não são assustados por concorrências especulativas para emitir seus diagnósticos.
A minha empresa passou por um teste diante de uma concorrência. O cliente, uma multinacional da área financeira, chamou-nos pela nossa autoridade no shopper marketing. O departamento de merchandising estava analisando portfolios de design para selecionar os candidatos para uma próxima concorrência. A multinacional havia contratado três diferentes agências de merchandising em três anos consecutivos. Na reunião, fizemos um discurso sobre inteligência estratégica de comunicação no varejo e sobre compromisso permanente entre empresas. Argumentamos que o problema estava na transformação direta da publicidade da mídia tradicional em comunicação de varejo nas agências. Faltava inteligência na operação. Faltava entender o que acontecia nos ambientes de varejo. Qual seria a real experiência de um usuário? Compreendendo isso, poderíamos criar uma comunicação mais eficiente.
Nove meses depois recebemos um telefonema a informar que o departamento de merchandising tinha sido reformado e que a multinacional desejava uma nova apresentação. Da equipe anterior somente restava uma profissional que se lembrava da nossa apresentação anterior. Ela apresentou-nos ao diretor de estratégia da marca da empresa, a quem fizemos uma segunda apresentação focada em processos permanentes de inovação. Fomos contratados como designers estratégicos, sem concorrência especulativa, ligados à área de inteligência da marca do cliente. Trabalhamos em parceria colaborativa por bastante tempo, até o cliente ser comprado por outro gigante europeu, mais próximo do conceito de «sociedade de mercado» definido por Sandel.
Existem inúmeros exemplos de empresas brasileiras e internacionais que valorizam o design a ponto de incluí-lo, desde o início, em qualquer projeto estratégico. O valor do design está diretamente ligado ao momento em que ele é acionado. Quanto mais cedo for, maior valor para a marca irá gerar. As vantagens para as empresas que incluem design thinkers na sua equipe estratégica são inúmeras:
- processo de design contínuo economiza energia e tempo;
- as soluções ficam mais profundas e carregadas de uma cultura autêntica da marca;
- permite um constante refinamento do conhecimento coletivo;
- a sinergia criativa pode ser medida nos resultados, porque 1+1 deve ser maior que 2, sempre;
- o design inventa o futuro a partir os dados do presente;
- o design thinking auxilia as empresas na rápida adaptação às mudanças do mercado através da construção de uma cultura de inovação.
Perdoem-me as empresas que realizam as concorrências especulativas, mas solicitar a prática de serviços de profissionais especializados sem remuneração é exploração do trabalho alheio; é abuso de poder; é politicamente incorreto e completamente anti ético; é mergulhar de cabeça na «sociedade de mercado» sem qualquer traço de empatia, sem se importar com os outros, sem se preocupar com a sustentabilidade das relações profissionais; é algo que ninguém conta com orgulho num jantar familiar.
Michael Sandel também me ensinou que, segundo Aristóteles, justiça é oferecer às pessoas o que elas merecem. Nós designers precisamos, por isso, merecer a justiça da ética. Precisamos ser éticos, antes de tudo. Precisamos construir valor para o nosso trabalho no universo dos negócios. Precisamos ter auto-estima e coragem para dizer NÃO, de forma elegante, diante de uma concorrência especulativa. Não é fácil – é uma arte –, mas dizer NÃO para um assédio moral é dizer SIM para si mesmo.
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Traduzir ao espanhol Traduzir ao inglês Traduzir ao intaliano- Disponível, a partir de 29/05/2012, em Ampro.com.br, sob o título AMPRO sugere remuneração de concorrências, pela assessoria de imprensa AMPRO.
- Sónia Carvalho, com o apoio do Dr. Paulo Gomes de Oliveira Filho, foi responsável pela edição do Caderno de Ética no Design, da ADG Brasil, 2004. O capítulo «A difícil arte de dizer não» na página 15 foi totalmente reescrito pela autora. Vídeo: Código de Ética Profissional do Designer Gráfico - ADG, por Tiago Vargas, disponível em Youtube.
- Michael Sandel é professor da Universidade de Harvard, onde leciona filosofia política desde 1980. Seu livro mais popular é «Justiça: o que é fazer a coisa certa» (Civilização Brasileira, 2011). No seu livro mais recente, «O que o dinheiro não compra» (editora Civilização Brasileira, 2012), Sandel explora os dilemas morais de uma sociedade capitalista e as escolhas que as pessoas enfrentam diariamente. O texto citado é do artigo de Jones Rossi e Guilherme Rosa «Crítica da razão económica» (editado na revista Veja em 21 de novembro de 2012, página 75).
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