Design desde o início da Humanidade
Somos viciados em novidades. «Storytelling» é uma das novas tendências do presente. Mas, ela não nasceu ontem.
AutorRique Nitzsche Seguidores: 273
EdiçãoMarcio Dupont Seguidores: 70
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Tudo mudou quando começamos a andar eretos e nossas mãos ficaram livres para fazer outras coisas além de servir de apoio para a locomoção. Ao ficarmos em pé, conseguimos olhar melhor a paisagem, descobrir com antecedência os movimentos da possível caça ou de inimigos. Pela necessidade da sobrevivência, as mãos evoluíram para realizar tarefas mais complexas. Nervos, tendões e músculos foram ficando sensíveis, capazes de realizar tarefas mais sutis.
Quando chegamos lá no topo da cadeia alimentar, há 100 mil anos, existiam pelo menos 6 espécies simultâneas do gênero Homo, nossos parentes na evolução. Até 70 mil anos atrás, os Sapiens não tinham qualquer vantagem que os diferenciassem, nem um design mais sofisticado. Produzíamos ferramentas muito similares aos outros Homos. Na verdade, os humanos Neandertais, com uma estrutura grupal bem interativa, possuíam vantagens físicas em relação aos Sapiens: um cérebro maior, eram mais fortes e mais adaptados ao clima frio da Europa.
Então, há 70 mil anos atrás, o Homo Sapiens começou a fazer coisas muito especiais. Uma Revolução Cognitiva gerou uma linguagem funcional no cérebro, uma nova forma de pensar e de se comunicar, através da fala e de outras expressões. Começamos a exercitar a transmissão de maior quantidade de informação sobre o mundo ao redor. Esse olhar para fora do grupo foi fundamental para a sobrevivência naquele ambiente hostil.
Uma segunda habilidade surgiu, parecida mas diferente. Aprendemos a transmitir maior quantidade de informação sobre as relações sociais dos indivíduos dos grupos. Ou seja, começamos a exercitar um olhar para dentro, aprendendo mais sobre o tecido do design social. A fofoca foi desenvolvida para trocar informações sobre comportamentos adequados ou inadequados dos membros do grupo. Principalmente os inadequados.
Fomos além das capacidades de comunicar grandes quantidades de informação sobre o que acontecia fora e dentro do grupo. Evoluímos para uma capacidade de transmitir grandes quantidades de informação sobre coisas não visíveis, coisas que não existiam naquela realidade. Além de contar histórias, conseguimos imaginá-las e representá-las. Por exemplo, sobre possíveis espíritos tribais. Assim, criamos histórias que viraram lendas, mitos, deuses e religiões.
«Graças à Revolução Cognitiva, o Homo sapiens adquiriu a capacidade de dizer: - O leão é o espírito guardião da nossa tribo».
Nos entusiasmamos ao criar estruturas mais elaboradas que, mais desenvolvidas, se tornaram culturas. Foi o inicio da história. A partir dessa época, expulsamos e dizimamos todas as outras espécies humanas. No período entre 70 mil e 30 mil anos atrás inventamos inúmeros instrumentos, barcos, lâmpadas a óleo, arcos e flechas, agulhas para costurar, jóias e objetos artísticos. Todos através de uma intensa prototipagem de objetos, imaginando, testando, refazendo, testando novamente, aperfeiçoando em um processo contínuo de design de produtos. Mas a confecção de ferramentas é insignificante se não estiver associada com a capacidade de cooperar com muitas outras pessoas.
A diferença significativa da Revolução Cognitiva entre os Homo sapiens foi a geração de uma capacidade de gerar «ficção» ou «realidades imaginadas», como a comunidade acadêmica atual as denomina. Mesmo sendo uma coisa que não exista, uma «realidade imaginada» não é uma mentira, mas algo que uma pessoa acredita que exista, que muitas pessoas acreditam, que todos acreditam. Quanto mais indivíduos acreditarem, mais persistente a crença irá ficar. Até hoje, novas realidades imaginadas mudam o mundo.
Para que possamos entender melhor a extensão das «realidades imaginadas», pensemos nas regras da etiqueta social, no sistema monetário, no comércio, nas empresas, nações, leis, religiões ou marcas de produtos e serviços. Nenhuma dessas coisas existe fora das «histórias imaginadas» que as pessoas contam. Gerar histórias eficazes não é fácil. Exige que criemos todos os acessórios para suportar a história e para gerar uma confiança coletiva. Nós cooperamos porque sinceramente acreditamos nos mesmos mitos. Foi lá, na Revolução Cognitiva, que aprendemos a inventar histórias e convencer pessoas a acreditar nelas.
Na verdade, gostamos de acreditar em histórias, de vivenciar nossos sonhos e desejos, projetar objetivos de vida, criar projetos que se tornam possíveis de serem experimentados por grupos de pessoas. Essa é a habilidade que adquirimos pela evolução, a capacidade de tornar material uma ideia compartilhada. Foi a ficção que tornou tangível a hipótese de criarmos vilas, cidades e impérios, possibilitando a cooperação entre um grande número de estranhos que decidiram acreditar na mesma história imaginada.
Um exemplo de «realidade imaginada» é a escultura leão-humano de quase 30 centímetros de altura descoberta na caverna Hohlenstein-Stadel e exposta no Museu de Ulm na Alemanha. Talvez seja a manifestação zoomórfica híbrida mais antiga do mundo, da era do gelo entre 35 e 40 mil anos de idade. A estatueta, feita por um Homo sapiens, com uma faca de pedra sobre marfim de mamute, mostra uma figura humanóide com uma cabeça e patas de leão.2 A escultura é uma manifestação de arte, de religiosidade e da capacidade da mente humana em imaginar coisas que não existem de fato, como uma entidade meio homem e meio leão.
Já o leão-ornamento da marca francesa Peugeot é uma pequena escultura de metal afixada em carros, caminhões e motocicletas. A empresa e a marca Peugeot são um produto da nossa imaginação coletiva, particularmente chamada de empresa de responsabilidade limitada o que é uma ficção jurídica. Lógico que as fábricas e os veículos produzidos existem fisicamente mas, para que isso aconteça, milhões de pessoas concordaram em acreditar em entidades que não existiam antes e foram criadas para dar credibilidade à uma «realidade imaginada». Quando o humano Armand Peugeot decidiu fundar a sua empresa, ele contratou um advogado que seguiu todos os procedimentos do complexo sistema jurídico francês. No final do ritual legal, o senhor Peugeot recebeu um documento, decorado com carimbos e selos, que tornava material a ideia de que a empresa Peugeot existia. Tanto o leão humano como o leão Peugeot são realidades imaginadas ou artificiais.
Há milhares de anos atrás, a sobrevivência na era do gelo da Europa era uma tarefa árdua, com imensas dificuldades e muitos predadores à solta. Uma tribo de humanos entendeu que o leão era um símbolo poderoso e desejou fazer uma ligação espiritual com ele. A criação da estátua tornou tangível um significado «religioso» aglutinando a imagem do homem com o leão. Através da estátua, os homens acreditaram ter capturado o espírito do vigor animal. Tempos depois, em 2010, a marca Peugeot evolui para o posicionamento mundial «Motion and Emotion», tentando «elevar sua marca a um estágio mais abstrato, criar uma relação emocional com o consumidor, indo além do produto».3 O design do leão Peugeot, adotado desde meados do século XIX, foi refinado para representar melhor o novo branding da marca.
Em ambos os casos, os humanos concordaram em acreditar na ficção tornada tangível pelo design. Através de símbolos, conquistamos a confiança dos outros humanos gerando significado conceitual. O storytelling não nasceu ontem, mas há muitos milhares de anos. Desde sempre, o design vem sendo uma ferramenta inestimável para a construção dos mitos e para a cooperação entre os humanos.
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- Yuval Noah Harari, no livro Sapiens, uma breve história da humanidade, original em 2012, edição brasileira pela L&PM Editores, página 32, em 2015. Conteúdo entre as páginas 28 e 41. A descoberta desse livro foi um momento feliz para mim. Sempre fui um consumidor de livros sobre a evolução do homem e colecionava artigos de revistas científicas, ou da internet. De repente, a pré-história e a história se manifestaram organizadas nas páginas desse deslumbrante livro que recomendo a todos.
- Dados disponíveis no site do Ulm Museum, e também no site Stadt Ulm Ulmer Museum, ambos checados em 21 de abril de 2015. Em relação à datação da escultura temos uma divergência de informação: 32 mil anos no livro de Harari, 35 mil anos no site do Ulm Museum e 40 mil no site Stadt Ulm Ulmer Museum. A informação não faz diferença para o argumento desenvolvido.
- Guilherme Pimentel, no artigo A evolução do posicionamento Peugeot, no site Análise de Marketing, em 2 de maio de 2011.
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