Design e vida cotidiana

Os designers podem melhorar a qualidade de vida das pessoas projetando objetos de baixa tecnologia onde a forma do objeto facilite a sua função.

André Ricard, autor AutorAndré Ricard Seguidores: 498

Lucas Monteiro Rocha Faria, tradutor TraduçãoLucas Monteiro Rocha Faria Seguidores: 7

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Cotidiano é tudo o que, todos os dias, de modo recorrente, nos acontece. De maneira que quando falamos da vida cotidiana nos referimos simplesmente, a vida em si. Poucas ocasiões que vivemos não fazem parte dessa cotidianidade. Nesse constante processo de ações que o viver pressupõe, nos acotovelamos, vemos, tocamos, utilizamos todo um repertório de coisas criadas pelo homem com intuito de amenizar a vida de cada dia. Segundo Max Frish «somente um milagre nos permite suportar a vida cotidiana»; essas coisas úteis que povoam nossa vida são e tem sido, desde os tempos primitivos, esse «milagre» necessário. Um milagre possível graças a habilidade que tem a condição humana de cerar as coisas que necessita e que a natureza não lhes proporciona. Sendo assim existimos graças a essas muitas coisas que nos auxiliam em cada momento, em cada ação que empreendemos.

Ao longo dos séculos e na medida em que nosso conhecimento foi avançando, essas coisas, que no seu início eram ferramentas essenciais, porém rudimentares, foram se sofisticando para nos proporcionar uma maior ajuda. Novas técnicas e materiais permitiram máquinas e aparatos que vão nos substituindo casa vez mais. Não somente nas tarefas mais básicas e mecânicas, como também nas de maior complexidade intelectual. Já se fala hoje da inteligência artificial que esses engenhosos materiais vão adquirindo. Nesse início do século XXI são poucas as tarefas que não se realizam sem a indispensável ajuda de alguma artificialidade. Desde o instrumento mais básico, como um simples calçadeira, até o mais novo robô cirúrgico. Cada gesto que fazemos, se faz necessário para a sua perfeita execução, a utilização de algum desses artefatos que desenvolvemos. Seja um simples objeto ou um aparato hipertecnológico. Com seus serviços úteis esses engenhosos produtos tem nos liberado de muitas tarefas proporcionando um melhor serviço e uma maior qualidade de vida.

Diante dessas perspectivas, estaríamos nos no alvorecer de um «mundo feliz» huxleyiano. Mas não é assim. Nossos conflitos não somente existem nas relações humanas, mas também carregam muitas dessas coisas artificiais. Sua subserviência muitas vezes esconde uma grande perversidade.

«Os artefatos que o Homem criou para libertar-se, acabou também por escravizá-lo. Se por uma parte elas ajudam, por outra restringem. [...] Estas máquinas e aparatos que nos auxiliam, se fazem cada vez mais imprescindíveis, na medida em que nos substituem com maior eficácia. Eles estão tão ligados a nossa própria vida cotidiana que chegam a ser parte integrante, e importante, dela. Existe tanta simpatia entre essas coisas nós que quando algo em nosso entorno objetual familiar sofre um dano, ficamos ressentidos como se nos mesmo tivéssemos ficado doentes. É como se nosso sistema visceral estivesse efetivamente conectado a este equipamento externo: somatizamos seus problemas. As coisa são um tipo de implante para nós e nos relacionamos com elas como se tratasse de próteses reais».1

Uma das características dessas máquinas tecnificadas é a vida efêmera que tem. O acelerado ritmo dos avanços tecnológicos defasam irremediavelmente em poucos meses tudo que usamos. O serviço que nos facilita um aparado está sempre pendente de um novo que o supere. Todos nascem com a sua morte anunciada. Isso nós sabemos! Se por uma parte este constante aperfeiçoamento nos convém, também nos incomoda. Necessitamos de um entorno menos mutante, mais estável. As mudanças no nosso modo de vida que tem como princípio as novas tecnologias, nos obrigam a uma continua reaprendizagem dos gestos da vida cotidiana e instauram um estranho mal estar que conduz para insegurança. As novidades, incluindo aquelas que nos são mais indispensáveis nos inquietam. Estamos a altura de entender e usar adequadamente o que nos oferecem essas inovações? Todo o progresso estimula essa tensão. Qualquer nova máquina é um ente artificial que, como intruso, introduzimos na nossa vida cotidiana e com ele temos de conviver satisfatoriamente. Para evitar que a tecnologia possa nos alienar em vez de nos ajudar, é necessário uma boa dose de sensatez e cautela.

A colaboração do design no que se refere a esses dispositivos hiper tecnológicos é marginal. Os benefícios que eles possuem estão em sofisticados mecanismos ocultos no interior de sua carcaça, muitas vezes ortogonais. A essas entranhas o design não tem acesso. Seu papel há de se limitar a cuidar da relação visual e táctil entre o homem como usuário e essa máquina que faz maravilhas. Em um eletrodoméstico, por exemplo, seja um micro-ondas, uma lavadora, o design pode melhorar a clareza de lidar com alguns controles ou aperfeiçoar a sua forma, porém não muito mais que isso. O próprio conceito operativo decide quem conhece e controla o que os avanços técnicos podem comportar em cada caso.

Em contrapartida, os objetos de baixa tecnologia possuem um potencial muito maior para a intervenção do design, aqueles em que a forma do objeto. facilita o seu uso. Utensílios, ferramentas, mobiliário, são as coisas que o design pode encontrar modos de melhora-los. Coisas que apesar de sua baixa complexidade estrutural não são objetos secundários. Ao contrário estão muito presentes na nossa vida cotidiana. Inclusive no século XXI, necessitamos de uma multiplicidade de objetos simples que dependem pouco das novas tecnologias e que precisam adaptar-se as necessidades que mudam a todo momento nas nossas vidas. Um talher ou uma cadeira devem seguir se adaptando a evolução do modo em que vivemos. As novas famílias exigem que se revise todo esse instrumental básico para que corresponda aos novos espaços e modo de vida. Por exemplos, pensar em cadeiras desmontáveis ou empilháveis para liberar espaço quando não estão sendo usadas. Talheres pendurados para termos sempre a mão e não em uma gaveta. E assim uma infinidade de mudanças, pequenas em aparência, mas que melhoram sua utilidade cotidiana. Esse é o território privilegiado que o design está e pode fazer suas melhores contribuições.

Dessas coisas básicas, essenciais, que a vida cotidiana necessita. Objetos simples, mais humildes porém mais íntimos, que manipulamos e dominamos, que conhecemos bem com toda essa intimidade possibilitada pelo manuseio do uso. Objetos que não se submetem aos imperativos tecnológicos. Que quando mudam não alteram essencialmente nosso modo de vida, pois só mudam para se adaptarem ao nosso modo de vida. Coisas que não nos atormentam, pois sempre mantem um ar de familiaridade. São coisas que sempre poderemos confiar, inclusive quando falham as redes de energia e comunicação que a sociedade civilizada entrelaçado em nosso entorno «para servir melhor». Esses objetos seguirão sendo o último reduto de liberdade e autonomia ativa, uma espécie de guarda pretoriana, aquela que salvaguardará uma normalidade em nossa vida cotidiana.2

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  1. André Ricard, «La aventura creativa«, Ed. Ariel, 2000.
  2. Ibid.
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