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O tabu da crítica interprofissional: insegurança, paranoia e refúgio no corporativismo.

Norberto Chaves, autor AutorNorberto Chaves Seguidores: 3906

Camila Hernández, tradutor TraduçãoCamila Hernández Seguidores: 0

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Em alguns setores profissionais da publicidade e do design gráfico dissemina-se uma sorte de norma deontológica que obriga a guardar silêncio a respeito dos trabalhos dos colegas. Esta norma parte do pressuposto da solidariedade obrigada entre pares. O profissional deve ser leal, antes de tudo, a seus colegas e jamais criticar o trabalho deles, qualquer que seja a qualidade desse.

Mas, quem estão mais autorizados que os bons profissionais de uma especialidade para detectar defeitos e virtudes nos serviços de seus colegas? Aplicando aquela norma, para criticar, por exemplo, uma campanha publicitária, os únicos autorizados seriam os médicos, os advogados e engenheiros, em tanto livres do compromisso de lealdade a um colega que não é tal.

Esta crença e conduta resultante, expõem assim, um grave problema à sociedade: uma área chave de seu desenvolvimento (a comunicação) percebe-se privada do papel transformador e otimizador da avaliação de qualidade e o conseguinte assinalamento das «más práxis».

A crítica, por outra parte, não é uma prática externa, alheia ou opcional: forma parte intrínseca do processo do design. O que é design senão uma sequência de críticas e correções a cada projeto anterior, realizadas pelo o próprio autor ou por seus assessores com o fim de alcançar o melhor ajuste ao programa?

Essa crítica, inevitável no desenvolvimento do projeto, não se limita ao próprio design senão que, normalmente, deve também se comprometer com a obra dos outros. Tal é o caso das intervenções sobre uma marca  pré-existente. Peça chave dessa intervenção é o prévio diagnóstico da mesma marca. Na maioria dos casos, essa marca prévia saiu de mãos de um designer. O que faz então o profissional? Se inibe por lealdade a esse colega? Não: deverá assinalar os defeitos da marca existente como condição técnica inevitável para abordar o novo design. E, em muitos casos, aqueles defeitos provêm de erros cometidos pelo designer anterior. É dizer: o pacto de silêncio é tecnicamente disfuncional e deontologicamente desleal ao cliente.

O profissional que, além disso, exerce responsavelmente a crítica da obra dos outros não faz senão pôr em conceito e socializar o que ele aprendeu na autocrítica, e conseguir transmitir uma avaliação séria da peça analisada. Tarefa na qual deveriam praticar todos os profissionais. Conseguir verbalizar os parâmetros de avaliação corretos acelera os processos de design e incrementa a qualidade do produto final.

O carácter paradoxal daquele mandato percebe-se quando se leva em conta uma instituição absolutamente legal e essencial da sociedade de livre concorrência: o concurso. Todo concurso de serviços profissionais -se está corretamente organizado- estabelece um júri de especialistas na matéria, dentre os quais figuram os profissionais do ramo com maior autoridade. Precisamente o questionamento dos júris mal convocados apoia-se, geralmente, na denúncia da ausência de especialistas entre seus membros.

No caso, por exemplo, de um concurso de design, dentre os jurados haverá designers de alto nível que julgarão os seus colegas com objetividade. Redigirão uma ata assinalando as virtudes do projeto ganhador e, implicitamente, por comparação, ficarão evidenciadas as limitações ou erros dos perdedores. E, bem possivelmente, a mesma ata será publicada, pelo simples critério de transparência da gestão.

Se a rejeição da crítica interprofissional fosse coerente, todo designer deveria se privar de fazer parte de um júri no qual um colega seja julgado; mas aquele colega, por sua vez, absteria-se de concursar se não fosse julgado por esses especialistas. Ou seja, a norma cria um paradoxo que é prova de sua falsidade.

Qual será, então, a origem desta flagrante contradição que suscita o «tabu da crítica»? Não é difícil de detectar. Trata-se da supervivência de uma ideologia instaurada pelos grêmios medievais: o corporativismo, conceito vigente e em uso até os dias de hoje. O pacto de silêncio, próximo à omertà1 da camorra,2 prescreve: «não me delate e eu não delatarei você; com o meu silêncio compro o seu».

Em uma sociedade que orgulha da democrática, em que o livre exercício da opinião e a crítica constitui a base, tal pacto de silêncio não representa só um anacronismo senão uma prática absolutamente antidemocrática e, além disso, prejudicial para a comunidade.

O profissional não somente tem o direito à crítica senão a obrigação de fazê-la. Sua lealdade não é só  com o grêmio —como na Idade Média— mas também com a sociedade à qual serve e da qual vive. Um profissional servil a seu grêmio é um traidor  com sua sociedade.

Assim, ao mesmo tempo que quem produz expõe-se à crítica dos demais, quem critica expõe-se a ser rebatido. Nessa exposição entram em jogo e se moldam os sistemas de valores. O silêncio, a omertà, é um vírus letal que deixa à sociedade órfã de parâmetros e arrojada ao caos do «tudo vale».

Ao realizar uma crítica fundamentada, o profissional desprende-se de suas inclinações pessoais e assume a responsabilidade de desenvolver crescentes níveis de objetividade, aperfeiçoando nesse exercício, parâmetros de validez general. Precisamente, FOROALFA ter nascido e crescido com esta vocação e abre um espaço no que todos aprendemos de todos.

Na realidade, por trás das supostas lealdades ao grêmio, opera uma descarada aspiração à impunidade, que pode equivocar-se sem risco de juízo; «eu não critico você, e você não me critica; e que os clientes se fodam».

Há muitos anos publiquei, numa entidade profissional, uma crítica a três anúncios institucionais que continham sérios desvios em sua ética social; especialmente graves porque era o discurso de uma instituição de governo que faltava implicitamente com respeito a seus governados.

Os três anúncios eram obra de uma mesma agência de publicidade líder, fato que eu ignorava porque a publicidade de órgãos públicos não costuma estar vinculada às agências. Seu presidente, um cordial colega meu em trabalhos conjuntos, convidou-me para um jantar no qual transmitiu-me sua preocupação. Este homem, obnubilado pelo corporativismo, não pôde nem sequer pensar que minha crítica era honesta. E perguntou-me se eu tinha algo contra a sua agência. Ele suponha que eu era tão mediocre ao ponto de usar minha palavra para desprestigiar a um colega em favor dos outros.

Quem duvida, a priori, da honestidade de um crítico, apesar do embasamento dos seus argumentos, põe em evidência sua própria desonestidade. Uma resposta madura, culta e leal dele, teria sido me convidar para uma reunião de trabalho com seus criativos para trocar ideias a respeito de uma retórica válida das comunicações institucionais.

A história da cultura tem a crítica como um de seus pilares de autorregulação, pelo menos desde Sócrates. Músicos, escritores, pintores, filósofos, cientistas tem exercido publicamente e durante séculos sua responsabilidade crítica.

Mas, pelo visto, a Idade Média não acabou para todos. Nossa época respalda, não por acaso, a aceitação acrítica de todo o consumado: «Just do it». Também desse jeito avança em sua irreversível decadência… Com os corporativistas como aliados incondicionais. 

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  1. Omertà: Pacto de silêncio. Código de honra siciliano que proíbe informar sobre as atividades delitivas.
  2. Camorra: organização criminosa italiana, vinculada à Máfia Siciliana.
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