Por trás do visível, existe um mundo não percebido

As pessoas costumam perceber só o final do processo de design. Mas o design é a ponte entre o pensamento e o resultado final.

Rique Nitzsche, autor AutorRique Nitzsche Seguidores: 273

Ana Bossler, editor EdiçãoAna Bossler Seguidores: 70

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Vou, resumidamente, contar a história de duas construções que encantam. A primeira é a Skara Brae, um pequeno grupo de oito casas que foi construída na ilha principal de Orkney no norte da Escócia. A construção de pedra nessa área desolada reflete o clima severo da região, com plantas rasteiras e poucas árvores. O que atrai a nossa curiosidade é a sua idade: foi construída há cinco mil anos atrás. Ainda não sabemos muito sobre seus habitantes- eram pescadores e agricultores, mas a procedência, língua ou mesmo o motivo da construção em local tão inóspito e solitário continua a ser uma incógnita. Sabe-se que após  500 ou 600 anos de sua construção , por volta de 2.500 a.C., eles se foram para sempre.

Uns 400 anos depois da construção de Skara Brae começou a faraônica aventura da única das maravilhas da antiguidade ainda em pé, a grande pirâmide de Giza. Ou seja, por 100 ou 200 anos elas coexistiram com humanos ao redor. A grande pirâmide de Queóps é uma fascinante realização da humanidade. Os egiptólogos acreditam que há um responsável principal pela épica edificação que usou 100 mil trabalhadores livres ao longo de 20 anos! Foi príncipe Hemiunu, portador do selo real, chefe do exército, guia das expedições, chefe de justiça, vizir, o maior dos cinco da Casa de Thoth e outros títulos grandiosos. Sua estátua incrivelmente bem preservada está no Pelizaeus Museum, na Alemanha.

«Não existem passageiros na nave sideral Terra. Somos todos tripulação».
Marshall McLuhan

O pensamento de McLuhan é um chamado à responsabilidade, lembrando-nos que temos uma obrigação de responder pelas nossas ações. Afinal, tudo que não é natureza é uma ação do design humano gerando o artificial. Deveríamos ser todos tripulação, mas sabemos que a realidade não é bem essa. A maioria das pessoas assiste ao espetáculo da vida, é somente consumidora de bens e serviços, sem querer interferir. A maioria da população deseja ser passageira de classe turística.

Nos sítios arqueológicos, os turistas olham, curtem perambular pelas construções e tiram fotos de lembrança. Normalmente, as pessoas comuns não percebem os processos complexos que estão detrás dos atos humanos. Porém, as pessoas curiosas procuram pistas que contem uma história. As mentes inquietas procuram desenvolver habilidades que expliquem como e porque as construções existiram. Os especialistas, arqueólogos, historiadores, antropólogos, cientistas e pensadores conseguiram especular sobre as construções.

«Descobrir é ver o que todos vêem e pensar em algo que ninguém pensou».
Albert Szent-Gyorgyi, fisiologista húngaro, Nobel de Medicina em 1937.

Alguns especialistas conjecturaram que os habitantes de Skara Brae foram desalojados pela mudança súbita de clima. Está na Wikipedia. Porém, um especialista mais cuidadoso achou contas ornamentais espalhadas no chão na frente de uma das casas. Esses adornos eram caros demais para serem deixados para trás em uma mudança definitiva.1 O que aconteceu? Pânico e pressa em abandonar suas casas? Muitas perguntas estão no ar frio de Skara Brae, sem respostas. As únicas pistas que sobraram são o resultado do seu design neolítico.

Na segunda e grandiosa história, Hemiunu é reverenciado hoje como o primeiro arquiteto ou o primeiro engenheiro do planeta. Porém, um pensador diferenciado percebeu que o maior feito desse empreendedor foi ser o primeiro administrador que «desenvolveu o planejamento da produção, controle de qualidade, coordenação de alimentação e alojamentos dos trabalhadores, hierarquia, ordens de produção em tempo real, contabilidade de estoques e a primeira cadeia de logística em grande escala». Stephen Kanitz foi quem notou essa falta de percepção dos estudiosos e calculou: «Para construir o monumento em 20 anos seria necessário colocar um bloco de cinco toneladas em seu devido lugar a cada dois minutos».2 Para Kanitz, a importância de Hemiunu foi ter sido um fantástico administrador, muito mais do que suas habilidades como arquiteto ou engenheiro.

Mesmo entre os especialistas, sempre existe um cérebro diferenciado que descortina uma visão inédita.

A maioria das pessoas não costuma entender os processos que existem antes das realizações humanas. Elas olham um relógio suíço e ficam admiradas com sua beleza. Poucos são os que conseguem mergulhar nos processos produtivos para admirar cada etapa precisa e poética de engenharia, metalurgia e design do objeto. As pessoas, e mesmo os administradores, às vezes, não dão o devido valor ao processo que gera a excelência por um motivo: elas não conhecem ainda o prazer de fazer parte de uma gestação criativa.

Quando o processo por trás da realidade vem à tona através de uma investigação, as pessoas prestam atenção. Pessoas gostam de histórias que façam sentido e tenham significado. Talvez por isso, os seriados que têm uma investigação como trama principal tenham tanto público cativo. A primeira etapa da metodologia do design thinking é a investigação, a busca dos verdadeiros dados de um problema. Em 2008, pedi a um aluno para listar os programas, cujos protagonistas viviam tramas investigativas como tema principal, disponíveis nos canais de TV a cabo no Brasil. Eram 26 seriados regulares simultâneos.

Como a maioria das pessoas, os clientes também não costumam dar valor ao tempo necessário do processo criativo. Os clientes querem pular diretamente para a solução do problema, evitando a salutar passagem pela investigação e pelo diagnóstico analítico. É difícil explicar para o cliente que pular diretamente na solução vai requerer a aceitação das soluções que já existem na prateleira. Soluções pré-fabricadas são cópias que não geram diferenciais competitivos. Inovação requer tempo e risco assumido.

Com um monte de pedras, podemos construir algumas casas ou levantar uma pirâmide com quase 150 metros de altura e entrar na eternidade. O dramaturgo Neil Simon costumava dizer que se ninguém quisesse correr risco, Michelangelo poderia ter pintado o chão da Capela Sistina, ao invés do teto.

Se você quiser uma solução diferenciada e única para o seu problema, acredite que essa tarefa custa tempo e tem riscos. Não caia na tentação da ansiedade de chegar logo na solução. Pensamentos renovadores precisam ser trabalhados, praticados, exercitados, testados, prototipados para então florescerem como uma nova história que irá encantar as pessoas. Toda criação inovadora é precedida de uma gestação apropriada.

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  1. Bill Bryson, Em casa, uma breve história da vida doméstica, Companhia das Letras, 2010.
  2. Stephen Kanitz, O primeiro grande administrador do mundo, artigo de 29 de maio de 2013, disponível em Administradores.com.br.
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