O design na TV brasileira: a herança da Manchete
Os anos 1980 foram especiais. Mudaram a tecnologia, a TV e o design. No Brasil, houve uma revolução no «broadcast design». A Rede Manchete teve muito a ver com isso.
AutorFernando Morgado Seguidores: 10
EdiçãoJoaquin Presas Seguidores: 18
- Votos:
- 9
Nos anos 1980, a televisão sofreu muitas mudanças. Na Europa, entrava o capital privado, ampliando a oferta de canais num continente até então dominado pelo monopólio estatal. Nos Estados Unidos, novas formas de distribuição cresciam rapidamente: os satélites, a TV paga, o UHF, os videocassetes etc. Seja por questões comerciais ou tecnológicas, o número de opções para o telespectador se multiplicou em todo o mundo.
O Brasil, ainda que num contexto muito particular, também acompanhou esse movimento. Em 1981, o governo permitiu a formação de duas novas redes de TV aberta: SBT, que foi ao ar naquele mesmo ano, e Manchete, que estreou em 1983.
Onde há mais concorrência, há mais necessidade de design, principalmente de marca. A televisão do velho continente foi um exemplo disso. Quando haviam apenas programações estatais, os canais nem tinham nome, sendo apenas numerados: canal 1, canal 2, canal 3 etc. A chegada de mais opções obrigou a criação de identidades próprias e mais fortes para BBC, Rai, RTP, TVE etc.
Sobre isso, importante registrar o ponto de vista de Rubens Furtado, primeiro diretor geral da TV Manchete. Durante uma palestra que proferiu em 9 de setembro de 1986, ele, que já tinha saído da emissora, disse o porquê da estética ser ainda mais importante na televisão comercial.
«A falta da excitação da disputa financeira e da disputa econômica nas televisões estatais não tem permitido o crescimento da pesquisa e uma alteração profunda na programação. É bem verdade que, por outro lado, elas [as televisões estatais] também não sofrem de uma degeneração típica das televisões comerciais. Nessa busca incessante de índices e ratings para poder vender o seu anúncio, a televisão comercial, evidentemente, começa a encontrar algum tipo de restrição na área do conteúdo. Passou a ser uma televisão muito mais voltada para a forma; daí surgirem todas essas vinhetas mirabolantes, bolinhas que rodam, voam, emes que explodem, fazendo com que ela seja uma espécie de hipnotizador».
O Grupo Bloch, dono da revista Manchete e da Rede Manchete, ingressou no universo da televisão juntando elementos estadunidenses e europeus: o formato comercial do primeiro com o foco informativo e cultural do segundo. O design se desenvolvia nesses dois mercados e também no Brasil, permitindo que o novo canal começasse com uma imagem criada por profissionais mais capacitados, equipamentos mais avançados e processos de trabalho desenvolvidos desde 1950, quando a TV surgiu no Brasil.
«Audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve»
Na década de 1980, o desenvolvimento da cultura de marca nas redes de TV se encontrou com o crescimento do mercado e da chegada de novos aparatos técnicos, inclusive para produção de vinhetas. Com tantos recursos, a tecnologia, naturalmente, apareceu não apenas na forma, mas também no conteúdo, como tema das animações criadas naquela época. Formas geométricas surgiam precisas, tridimensionais e em movimento graças aos computadores.
Soma-se ainda outro aspecto muito forte do zeitgeist dos anos 1980: o espaço sideral, ao melhor estilo de Star wars, lançado no final da década anterior. Através dele, os conceitos de futuro e tecnologia ganharam suas expressões mais literais e universalmente compreensíveis.
Na Bandeirantes, o olho, símbolo do canal, ganhou a forma de uma nave espacial e seu logotipo assumiu perspectiva semelhante a do texto inicial do filme de George Lucas.2 Na Globo, esferas voavam no infinito entre retângulos e cubos multicoloridos.3 No SBT, um satélite iluminava o Brasil, assinalando as regiões cobertas pela rede4. Na Cultura, seu símbolo bidimensional, criado pela Cauduro Martino, se multiplicava e ganhava profundidade.5
Nesse cenário, nasceu a Rede Manchete, absorvendo essas influências e somando outras, criando a imagem da TV do ano 2000.6
M de Manchete
Meses antes do lançamento da TV Manchete, ocorrido em 5 de junho de 1983, Francesc Petit, sócio da agência de publicidade DPZ, recebeu um pedido da família Bloch para criar a identidade visual da nova emissora. De acordo com Petit, «a encomenda era simples e clara. O Jaquito [Pedro Jack Kapeller], diretor do grupo, pediu que a marca mostrasse as cinco áreas de atuação: as rádios AM e FM, a editora, a gráfica e a televisão. Tinha que juntar cinco elementos numa só imagem».7
Em entrevista para Fernando Morgado, Hugo Kovadloff, ex-diretor da SAO, divisão de design da DPZ, recordou que um dos desafios era apresentar as emissoras próprias que compunham a rede: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Fortaleza.8 Para Petit, a solução final, um M com círculos em suas cinco extremidades, «passava a ideia do mundo da tecnologia eletrônica. Fiquei entusiasmado com a solução tão genial, e eles aprovaram a marca num piscar de olhos».7
Sem dúvida, a tecnologia era um dos pontos mais importantes do projeto Rede Manchete, que recebeu U$S 35 milhões em equipamentos, mais da metade do orçamento total, de U$S 50 milhões.
O que os telespectadores viram nos primeiros tempos da TV Manchete foram muitas referências ao espaço, representando o futuro. A abertura do programa inaugural, O mundo mágico, apresentava o símbolo do canal como uma nave, voando pelos céus do Brasil. Essa vinheta ficou tão popular que se transformou na abertura e encerramento da programação diária.
O principal noticiário da emissora, Jornal da Manchete, tinha um amplo e moderno cenário em aço, com o switcher ao fundo, como na CNN. Foi o primeiro canal brasileiro a ter esse tipo de espaço, hoje um padrão internacional.
A equipe da SAO trabalhou em conjunto com os profissionais da Manchete somente durante o começo da emissora, na criação de suas primeiras vinhetas.
Nos anos seguintes, notou-se um abandono das normas originais do sistema de identidade criado pela SAO. De acordo com Kovadloff, «nossa percepção de que eles não estavam utilizando de forma correta o manual era evidente, mas compreensível. Não existia a cultura da marca internamente e, naquela época, não fazíamos a gestão da marca na implantação».8
Apesar das crises pelas quais passou e da ironia histórica de nascer como a TV do ano 2000 e sair do ar em 1999, a Manchete cumpriu um importante papel no desenvolvimento do design na televisão: foi pioneira no uso de muitas tecnologias; formou uma geração de profissionais que, hoje, trabalham em diversos canais, a começar pela Globo; e lançou vinhetas e aberturas que ficaram na memória do público.
A Rede Manchete foi a «rotativa sem papel» de Adolpho Bloch. Levou para a tela a beleza e a modernidade que tinham suas revistas, escrevendo uma página fundamental da televisão e do broadcast design no Brasil.
- Votos:
- 9
- Sobre o desenvolvimento do design na TV européia, ler: IVARS, Christian H. El diseño gráfico em televisión: técnica, lenguaje y arte. Madri: Cátedra, 2002.
- Sobre o projeto inicial da TV Manchete, ler: MORGADO, Fernando. Segmentação na TV aberta: a implantação da Rede Manchete (1983). Cadernos de Televisão, v. 4. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos de Televisão, 2012, p. 42-29.
- FURTADO, Rubens. Programação I: da Rede Tupi à Rede Manchete. In: ALMEIDA, Candido J. M.; FALCÃO, Angela; MACEDO, Cláudia (Orgs.). TV ao vivo: depoimentos. São Paulo: Brasiliense, 1988.
- Vinheta da TV Bandeirantes, 1982.
- Vinheta da TV Globo, 1983.
- Vinheta do SBT, años 1980.
- Vinheta da TV Cultura, 1982.
- TV do ano 2000 foi um dos slogans adotados pela TV Manchete no seu início. Outro foi TV de 1ª classe.
- PETIT, Francesc. Marca e meus personagens. São Paulo: Futura, 2003.
- Entrevista de Hugo Kovadloff para Fernando Morgado por e-mail (13 fev. 2013).
Este artigo não expressa a opinião dos editores e responsáveis de FOROALFA, os quais não assumem qualquer responsabilidade pela sua autoria e natureza. Para reproduzi-lo, a não ser que esteja expressamente indicado, por favor solicitar autorização do autor. Dada a gratuidade deste site e a condição hiper-textual do meio, agradecemos que evite a reprodução total noutros Web sites.