O design como a doença dos objetos

A super dosagem de design, que começou nos anos oitenta e continua nos dias de hoje, desproveem os objetos de sua essência.

Yves Zimmermann, autor AutorYves Zimmermann Seguidores: 650

Lucas Monteiro Rocha Faria, tradutor TraduçãoLucas Monteiro Rocha Faria Seguidores: 7

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Os animais quadrupedes passam a sua vida na natureza, estando no meio, junto e rodeado de coisas: árvores, rochas, campos, outros animais, etc. Para eles as coisas são dadas. Não se questionam nem transformam seu entorno. Tão pouco fabricam ferramentas. O animal bípede, em contrapartida, esse animal mal denominado racional, passa sua vida no meio, junto e rodeado de «objetos»: casas, carros, aparatos, jornais, televisão, etc. Ao contrário das coisas os objetos não estão prontos, esses animais fazem o seu design e os fabrica. São animais habilidosos. Sua sobrevivência depende dos objetos; não se pode pensar sua existência sem os objetos, sem eles não haveriam alcançado o status de humanoide. A fabricação de objetos e o contato diário com eles é parte substancial da história do animal racional na medida em que esta relação com os objetos faz o homem ser homem. Mostra seu modo de estar no mundo e na história.

Essa relação entre sujeito e objeto se estabelece fisicamente: pelos olhos que percebem, as mãos ou outra parte do corpo que tocam, utilizam e manipulam. Os olhos veem os objetos colocados diante deles, as mãos manipulam. A visão e o manejo pelas mãos é um constante feedback de informações que se encontram reunidos nos objetos. Eles são a todo momento manipulados, com intuito de realizar alguma tarefa, pois todo objeto fabricado serve para algum fim. Esse fim está fora do objeto em si: dirijo o carro «para» chegar a um determinado lugar; serve-se o vinho para encher a taça; leio o horário dos trens para conhecer os horários de chegada e saída. Leio o jornal para me informar das barbaridades que acontecem no mundo, e assim sucessivamente. Todo objeto é um ser-para. No entanto, um objeto que não serve para conseguir-se alcançar um fim concreto, prático, não é um «ser-para», e sim um «ser-em-si». Por exemplo, a obra de arte.

Quando Anaximandro disse que «o homem pensa porque tem mãos», é porque as mãos são fonte de conhecimento. Como disse acertadamente Otl Aicher sobre a esse respeito «Conforme o que a mão pode fazer (greifen), o pensamento pode também entender (begreifen)».

O tato ao apalpar o objeto, o seu uso, revelam a verdade que já havíamos percebido pelo olhar. Ao levarmos em consideração somente a visão poderia haver alguma ilusão. A certeza vem no toque. Entretanto as mãos não somente tocam, as mãos fazem: objetos, ferramentas, vestidos. A mão fabrica um bastão, uma vara e descobre-se uma arma. Também as mãos fazem livros, música, poesia. O conhecimento conseguido por meio das mãos e pelo manejo dos objetos é processado pelo cérebro e transformado em informação para a continua adequação dos objetos pelas mãos. Nesse movimento de ver-manipular, existe um incessante ato de ir e vir sobre o que está ao redor se configurando no real em seu sentido mais amplo, adquirindo a forma humana de en-torno.

O que é um objeto? Objetos de tempos anteriores expostos em um museu, adequadamente contemplados e questionados, nos informam a cerda do grau de conhecimento que tinham seus configuradores em épocas remotas. Do mesmo modo os objetos contemporâneos, adequadamente contemplados e questionados nos podem informar sobre a cultura, seus configuradores e produtores. O objeto por seu conjunto de atributos materiais e formais, diz de si e diz de seu configurador e porque ele, como ser socializado, projetou assim e não de outra maneira.

Se voltarmos os nossos olhos para os objetos de hoje, se observará, na amplitude da visão histórica dos objetos, que a aparência, a sua forma ou Gestalt, é ocupação específica de uma profissão. Os designers projetam, entretanto não produzem o que configuram. Os antigos configuradores de objetos são hoje os designers. Outorgam o princípio da objetualidade aos objetos, seu ser, sua identidade. No sentido radical do termo, o ato de se fazer design é o ato de pensar o objeto, o que se equivale a pensar a sua essência. Fazer design é um pensar na medida em que é também uma indagação constante por que? Para que? E da linha que divide a pergunta da resposta resultaria o perfil, a Gestalt, a essencialidade do objeto a ser projetado.

Se agora nos perguntamos sobre o que divide a nossa visão do que é objetual e do que é meio, vemos que a indicação de objetualidade, o histórico ser-assim de um objeto concreto está mudando. As grandes transformações, também no design, que tiveram amplo lugar na história recente, permitem ter uma perspectiva que distinguem claramente um antes e um depois. Em outras palavras, a Ercheinung, a aparência dos objetos, sua Gestalt, é hoje bem diferente se compararmos com antes. Não está sendo apresentada aqui uma lamentação sobre a mudança estética dos objetos e sim um «retrato conceitual» dos mesmos.

Um pictograma informa algo. Suas formas são extremamente especializadas com intuito de exercer uma simplificação para que o seu conteúdo semântico possa ser inteligível para todas as raças e culturas, mesmo as que possuam outro idioma e outro sistema gráfico de comunicação. Um pictograma qualquer, por exemplo, a representação «homem», é uma forma visual do conceito de «homem», não indica nada em absoluto sobre as peculiaridades da figura: se é bonito ou feio; se é jovem ou velho; branco ou negro, amarelo ou roxo; se está casado ou solteiro; não informa nada além da forma, a não ser que se trata: «homem».

O «pictograma conceitual» é, portanto, a forma essencial de uma coisa e que pode ser expressada por uma única palavra. Muitos objetos que nós utilizamos ao longo da vida não mudam o seu pictograma conceitual: um garfo, por mais designers que tenham projetado infinitas variações do mesmo garfo, nenhum deles se distanciou do «pictograma conceitual» do que se define o que é um garfo.

E é precisamente nesse sentido que está dirigida a crítica a aqueles que por razões equivocadas, e sem excluir a egolatria, tem modificado os «pictogramas conceituais» de certos objetos. Já se sabe: no afã da «inovação» (o progresso), o mercado, os interesses econômicos e também o querer ser artista, um criador e não meramente um designer, tem contribuído de maneira substancial para a mudança de muitos aspectos da vida cotidiana. A diferença entre antes e agora reside em que os objetos de antes tinham seu uso ou função «escrita» em sua Gestalt essencial. Esta indicava sua finalidade de uso; por mais variadas que poderiam ser suas representações, obedeciam a códigos, a «pictogramas conceituais» estabelecidos e sabidos pelos usuários.

Os anos oitenta do design são históricos no sentido negativo do termo, pela ruptura desses pictogramas. Uma luminária mesa já não tinha que representar necessariamente a essência do «pictograma conceitual», e ao procurar uma luminária destas poderá se deparar com uma palmeira.

Na época atual, os objetos refletem tanto o seu ser-para... como o seu ser-assim. Gesticulam. Com seus gestos chamam (ou gritam) a atenção ou invés de apontar para o seu ser-para... Se apresentam como hiper-formalizados. Quando um objeto passa de ser-para... a ser-assim, a forma acusa esta mudança. Se hiperiza. Estes objetos já não descansam em sua naturalidade de ser-para... essa hiper-formalização é sintoma de estar fora de si. Os objetos padecem, estão doentes de design. A ironia está no que foi feito pelo design, que em princípio outorga o ser ao objeto, e o priva do seu ser ou violenta-lo e injetar uma sobre dose de design.

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  1. Otl Aicher, «Analógico y digital», Gustavo Gili, 2001.
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