O designer solipsista

Cada um de nós é como um peixe que não vê a água na qual está imerso e, por conseguinte, sua existência real (do peixe e da água) não passa de uma emaranhado de sentidos.

Marcos Beccari, autor AutorMarcos Beccari Seguidores: 39

Joaquin Presas, editor EdiçãoJoaquin Presas Seguidores: 18

Tudo aquilo que consideramos «real» constitui apenas um irrisório grão de areia da superfície de uma enorme «casca» formada por um trabalho de aprendizado e conhecimento acumulado no decorrer de nossas vidas. Diante disso, somos convidados a interrogar, mas sem nada pressupor, o que há por detrás desta casca. Não é a realidade, não é o mundo em si, não são os fatos – estas ideias também fazem parte da casca. É simplesmente algo desconhecido.

Alguns filósofos defendem que é impossível enxergar o que há por detrás desta casca porque toda consciência é memória: «a estrela que vemos no céu talvez já tenha deixado de existir anos atrás» (Bergson), ou seja, toda e qualquer percepção está atrasada em relação ao objeto percebido. No entanto, este raciocínio já pressupõe a existência de um objeto percebido e, portanto, já pressupõe que há um «mundo» por detrás da casca. A «memória» é entendida apenas como um indício, um rastro ou vestígio deste suposto «mundo».

Mas o raciocínio anterior é útil para entendermos que a própria «casca» é um pressuposto contestável. Que a casca é a casca de si mesma. E que, portanto, qualquer ideia proferida acerca «do mundo», qualquer teorização, não provém «do mundo», mas provém de quem profere a ideia, provém de quem a teoriza. Isso significa que não percebemos as coisas a partir «do mundo», mas a partir da percepção em si. A percepção antecede, cria e recria o objeto percebido.

Sendo assim, a percepção não é nem uma função sensorial e fisiológica, nem um fenômeno transcendente e místico. Não há como sabermos o que é a percepção sem antes tentarmos percebê-la. A questão é que a forma de perceber prescreve a coisa percebida. Então aquilo que chamamos de «realidade» limita-se a esta forma de perceber, limita-se a nossas experiências.

«O visível à nossa volta parece repousar em si mesmo. É como se a visão se formasse em seu âmago ou como se houvesse entre ele e nós uma familiaridade tão estreita como a do mar e da praia. No entanto, não é possível que nos fundemos nele nem que ele penetre em nós, pois então a visão sumiria no momento de formar-se, com o desaparecimento ou do vidente ou do visível. Não há, portanto, coisas idênticas a si mesmas, que, em seguida, se oferecem a quem vê, não há um vidente, primeiramente vazio, que em seguida se abre para elas, mas sim algo de que não poderíamos aproximar-nos mais a não ser apalpando-o com o olhar, coisas que não poderíamos sonhar ver inteiramente nuas, porquanto o próprio olhar as envolve e as veste com sua carne. (…) Qual a razão por que, envolvendo-os, meu olhar não os esconde e, enfim, velando-os, os desvela?» (Merleau-Ponty, 1992, p. 128).1

Em outras palavras, cada um de nós é como um peixe que não vê a água na qual está imerso e, por conseguinte, sua existência real (do peixe e da água) não passa de um ambiente de significados, redes de sentido. Tal concepção aproxima-se da ideia do solipsismo 2 que, em linhas gerais, é a crença de que nada existe além de nós e de nossas experiências.

À primeira vista, esta parece ser uma ideia demasiado radical e idealista. De fato, é radical a premissa de que a única realidade cognoscível é o eu. Mas não é idealista. Idealistas são as distorções possíveis e infelizes a partir do solipsismo: somente eu existo e, portanto, somente eu comando o mundo ao meu redor, entre outras bobagens.

O solipsismo é, antes de tudo, ceticismo. Trata-se de uma contínua desconfiança do caráter «real» das coisas percebidas, incluindo a «realidade» do próprio «eu». Partir do pressuposto de que existe o «eu» anula de antemão a possibilidade solipsista. Ser solipsista significa duvidar, sobretudo de si mesmo. A virtude básica do solipsista é a coragem de viver sabendo-se amaldiçoado pela desconfiança, pela possibilidade da mentira.

Acho que o filme «Sinédoque, Nova Iorque»3 (Charlie Kaufman, 2008) configura o melhor retrato desta condição solipsista. Não dá para descrever o filme sem assassiná-lo, mas a história é basicamente a seguinte: na tentativa de construir uma peça de teatro que retrate perfeitamente a realidade, o protagonista Caden Cotard passa anos em um galpão reconstruindo os cenários, os personagens e as experiências de sua vida.

Sinédoque é uma figura de linguagem (como metáfora ou alegoria) que toma a parte pelo todo. Assim as cenas são articuladas: sem aviso prévio, os fatos não são narrados sucessivamente, mas se atropelam. É como se os fatos em si não fossem suficientes para se construir uma experiência. A ordem dos fatos, os diálogos e seus respectivos significados são muito menos importantes do que a forma como foram vivenciados pelo protagonista.

Mas o grande traço solipsista deste enredo é o seguinte: Caden Cotard transforma sua própria vida numa ficção tentando com isso torná-la mais real. E ao chocar-se contra os limites da realidade, Caden percebe que não existe uma única realidade possível, mas que cada personagem constitui um mundo particular e, ao mesmo tempo, todos os mundos possíveis. Logo, muito mais do que perceber a realidade, nossas experiências interpessoais são capazes de criar e ampliar realidades.

Voltando ao raciocínio solipsista, quero pontuar algumas questões. Aquilo que chamamos de «realidade» é resultado de uma experiência subjetiva, isto é, uma circunstância afetiva individual. Esta «realidade», portanto, pode ser vivenciada e compreendida somente dentro de uma esfera subjetiva. Mas quando «traduzimos» nossa realidade para outras pessoas, nossa realidade adquire novos significados, assim como a realidade das outras pessoas. E nesta troca interpessoal, estamos criando, ampliando e propagando diferentes realidades.

O designer é um articulador de realidades. Ocultar e ao mesmo tempo revelar uma ou outra realidade é o que fazemos enquanto designers. Designers solipsistas são aqueles poucos que conseguem traduzir sua realidade particular à esfera interpessoal. Para tanto, suas experiências devem ser ao mesmo tempo subestimadas e excessivamente valorizadas – eles sabem encantar as pessoas sem transparecer a menor pretensão disso.

Em todo caso, o fato é que boa parte de nossa vida é minimamente fictícia. Por um lado, isso implica que a qualquer momento podemos nos deparar com a ficção em si, com a mentira da realidade. Por outro lado, significa que podemos nos tornar coautores da realidade, participando das diversas ficções que estão sendo vivenciadas ao nosso redor, remodelando-as e ampliando-as. Há tantas realidades possíveis quantas ficções que contém realidades particulares.

Em nível epistemológico, o solipsismo implica que a realidade é feita de circunstâncias, relações e interações. Trata-se daquilo que Merleau-Ponty (op. cit., p. 188) chama de entrelaçamento ou quiasma e que define o pensamento filosófico: «compreender aquilo que faz com que o sair de si seja entrar em si e inversamente».

Não importa saber se a «realidade em si» existe materialmente ou idealmente, não importa saber o que é a «coisa em si». O que importa é entendermos como a realidade é vivenciada através de experiências intersubjetivas, preocupando-nos com o modo de olhar para as coisas. Afinal, não estamos isolados em nossos mundos privados e individuais, mas estamos participando de um mundo intersubjetivo, com a possibilidade de ampliá-lo.

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  1. MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1992.
  2. Ver «Solipsism» en Wikipedia.
  3. Ver «Sinédoque, Nova Iorque» en IMDB.

Texto originalmente publicado no blog Filosofia do Design.

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