O corvo e o ensino de design

O problema do conhecimento da natureza do objeto de investigação do design.

Serafim Nossa, autor AutorSerafim Nossa Seguidores: 3

«É meu intento tornar manifesto que nenhum ponto de sua composição [do poema O Corvo] foi atingido por acidente ou intuição – e que o trabalho avançou passo a passo, até o final, com a precisão e a rígida conseqüência de um problema matemático. […] O fato é que a originalidade […] de forma alguma é questão de impulso ou intuição, como supõem alguns. Em geral, para ser encontrada, deve ela ser procurada de modo elaborado, e embora se constitua num mérito da mais alta classe, atingi-la exige menos invenção do que negação». (A filosofia da composição, 1951).

Ao relatar o modo como criara seu célebre poema O corvo, Edgar Allan Poe retoma o intenso debate acerca da precedência —ou não— do método, e também da técnica, em relação à intuição criativa. Na opinião de Poe, a criação pareceria resultar não de um ato intuitivo —volitivo e puramente livre—, mas sim de uma atmosfera mensurada e anterior, sendo a criação, nesses termos, mera materialização de expectativas forjadas em moldes científicos, senão matemáticos. Além disso, o próprio Poe sustentaria a idéia de que, na maioria dos casos, a originalidade seria mais um resultado positivo do trabalho metodológico e rigoroso do que, de fato, um produto da intuição – aliás, para ele, apenas mentes incomuns seriam capazes de gerar tal impulso.

Para além de questionar a idéia de originalidade enquanto fenômeno essencialmente intuitivo, a confissão de Poe parece, por outro lado, invocar o tema da possível aproximação – se não a coincidência – entre as tarefas do artista e do projetista – o engineerer. Sob tal perspectiva, ver-se-iam sobrepostas atividades onde a motivação para a criação pareceria surgir de necessidades individuais consideradas claramente distintas, a saber: de um lado, o artista, motivado por inquietações pessoais, expressaria aquilo que poderíamos, grosso modo, definir como o resultado de uma interpretação pessoal da realidade – em muitos casos, o relato não-verbal da essência do representado; de outro, o projetista – também o designer –, uma vez imerso em demandas objetivas e portador de um discurso assentado em metodologias, representaria, por assim dizer, uma espécie de desejo universal ou, tão somente, aqueles valores perseguidos pelo público ora convertido em alvo.

Assim como Poe, Koellreutter, em Sobre o valor e o desvalor da obra de arte, opondo-se à idéia de uma distinção essencial entre as tarefas do artista e do projetista, buscara, mediante olhar antropológico, justificar a idéia de que também a arte cumpriria funções ordinárias ou elementares, saciando necessidades humanas, grande parte delas de natureza essencialmente pragmática. Desse modo, o artista, uma vez em estreito compromisso com a satisfação de necessidades de foro exterior, produziria sua arte para o público, portanto, para o outro; e mais, sua arte somente ganharia sentido, na opinião de Koellreutter, caso fosse devidamente decodificada (compreendida) pelo espectador da obra. Nesses termos, os objetos de arte deveriam ser reconhecidos – assim como são os objetos produzidos pela mão da ciência – como formas de expressão em fiel compromisso com as necessidades humanas mais básicas como, por exemplo, a comunicação intersujeitos: «parto do princípio de que a Arte [...] é um meio de comunicação, um veículo para transmissão de idéias e pensamentos, daquilo que foi pesquisado e descoberto ou inventado». Sendo assim, a arte é uma atividade que contribui para “a tomada de consciência do novo, ou do desconhecido”. Tal esclarecimento constitui, para Koellreutter, uma das mais importantes, se não a mais importante função da arte.

Iniciativas radicais de diluição dos limites entre as atividades artística e científica, como a operada por Poe, enfrentaram, historicamente, a recorrente oposição de programas de investigação, sobretudo dedicados à manutenção de um discurso científico livre de valores; livre, portanto, do que buscaria expressar a poesia, a narrativa mitológica, a experiência mística, dentre outras formas de expressão consideradas degeneradas ou contrasensuais. Talvez o positivismo lógico (em especial, a atitude antimetafísica instalada pelo Círculo de Viena)  tenha se afigurado o maior levante científico-filosófico de oposição à construção de proposições que encerrem, em sua expressão, vivências e valores. Essa tradição, mesmo hoje, ainda inspira o processo de esquadrinhamento fisicalista dos objetos de pesquisa; tradição que repercute o ideal naturalista de uma precisa coincidência entre o objeto e suas propriedades naturais, a saber, sua extensão, peso, além de sua capacidade de interação física com os demais objetos factuais.

No campo do design, a idéia de que a natureza do objeto coincida com suas propriedades formais (e seja por elas determinada) estimulou, por vezes, a emulação de uma gramática naturalista e pragmática que trataria de ressignificar conceitos fundamentais como, por exemplo, as noções de função e necessidade. À luz de tal gramática, o termo função passaria a significar a satisfação de uma necessidade de ordem exclusivamente física ou formal; portanto, a satisfação de uma necessidade objetiva e observável. Também a noção de necessidade estaria sujeita a uma compreensão pragmática, mesmo utilitária do seu sentido. Isso ocorreria na medida em que tal termo seria entendido como uma vontade gerada por restrições impostas ao indivíduo, sejam de origem biológica (de alimentação e de reprodução, por exemplo) ou motivadas pelo instinto de conservação individual ou gregário, tais como as necessidades de proteção frente as intempéries ou contra eventuais ataques de animais predadores.

Uma gramática pragmática, onde os termos função e necessidade seriam definidos à luz do utilitarismo, parece especialmente necessária em teorias que definem a tarefa do cientista – e também do designer – por oposição à tarefa do artista. Segundo tal distinção, somente os objetos produzidos em escala industrial – portanto objetos produzidos sem uma vocação estritamente artística – poderiam ser reconhecidos como puramente funcionais1. Sendo assim, o objeto da arte, se entendido como a expressão pura de uma individualidade sem compromissos com a realidade, jamais poderia ser apontado, pelo utilitarista, como algo estritamente funcional – ser funcional, aqui, consiste em ser útil e eficaz na resolução de um problema observável ou factual. Desse modo, mesmo que a obra de arte represente uma divindade ou a tradição para determinado grupo social, sendo assim compreendida como realização pública e para o público, tais funções não seriam, sob esta perspectiva pragmática e objetivista, reconhecidas como funções, por assim dizer, autênticas ou genuínas. Isso, pois, a noção utilitária – ou industrial – do termo função estaria estreitamente vinculada à idéia de satisfação de necessidades de consumo de massa.

Esta demarcação do objeto do design, seja ele afinal artístico ou resultado apurado no rigor da ciência, tem criado importantes dificuldades teóricas, sobretudo de ênfase epistemológica, em processos de criação ou reformulação de currículos de design. Os impasses parecem resultar de uma compreensão parcial, senão apressada, da tarefa do designer determinada, muitas vezes, pela evangelização da técnica e do rigor metodológico. Essa concepção formalista do design também impede, de forma colateral, uma aproximação adequada entre conteúdos eminentemente teóricos – em especial de teorias críticas – e conteúdos de metodologia e tecnologia, fundamentalmente pragmáticos. Desse modo, o currículo de design tende, por vezes, a privilegiar disciplinas de caráter técnico, em especial de ensino de softwares e dos meios de produção material, colocando, em segundo plano, conteúdos de teoria da arte e de humanidades como, por exemplo, a filosofia, a psicologia e a antropologia. Diante de tal apelo, é comum observarmos a defesa de um amplo investimento em conhecimentos práticos e tecnológicos como meio de prover e garantir ao sujeito em formação, desde já, a perfeita sincronia entre conhecimento e sociedade de consumo; em outros termos, que este sujeito, ainda na condição de aprendiz, possa, o quanto antes, funcionar como uma peça ajustada e eficaz do sistema de produção intelectual e material corrente.

Notadamente no ensino de design, a perspectiva tecnocrática do currículo, via de regra, tem atribuído às disciplinas de artes e humanidades uma importância complementar ou secundária, ao manifestar indiferença – mesmo certa descrença – frente à idéia de que tais componentes possam participar, de modo efetivo, do processo de definição do objeto e da delimitação do raio de ação da atividade do design. Reconhecidas como etapa burocrática e obrigatória, a ser logo cumprida nos semestres iniciais da formação, tais disciplinas seguem desconectadas do núcleo pragmático do currículo, considerado o cerne da formação e, conseqüentemente, a etapa essencial e suficiente do processo formativo. Sob tal regime, percebe-se, por exemplo, a semiótica reduzida a esquemas naturalistas, diagramáticos e mecânicos – como o dualismo mente-mundo; a história da arte reduzida a uma história de exemplos, ou fragmentos visuais, da produção material humana; a idéia de mercado reduzida à idéia de clientela; a noção de conforto reduzida à satisfação de medidas antropométricas baseadas em um corpo universal: um móbile sem feições e vontade; a percepção humana reduzida à anatomia do globo ocular e, como conseqüência, o objeto percebido reduzido a mero fenômeno físico, em sentido estrito, natural e biológico.

Para além do ensino em função de discursos de mercado, ou o perspectivismo no ensino de design (que nos leva, via de regra, ao kitsch), os que pensam o currículo de design defrontam-se ainda com dificuldades de ordem essencialmente teórica, a saber: a localização do objeto do design nesta ou naquela seara do conhecimento; a dificuldade em reduzi-lo a único conceito ou definição. Tais entraves parecem solicitar o que, aqui, chamamos de terapia do objeto do design; em outros termos, uma investida analítica sobre os marcos epistemológicos que assegurariam a cientificidade ou a dizibilidade deste objeto. Segundo esta nossa idéia, o empreendimento de uma cuidadosa reflexão acerca de tais marcos, e suas respectivas matrizes conceituais, levar-nos-ia à superação da idéia de que o objeto do design representaria, sem implicar maiores problemas teóricos, a clara materialização da distinção de natureza entre o fazer artístico e a produção industrial. Esta terapia demandaria o exame de problemas comuns às áreas de teoria da arte e teoria da cultura, sendo logo refletidas questões de fundo estritamente epistemológico, sobretudo aquelas concernentes ao processo de reconhecimento – ou mesmo negação – do objeto produzido, para além de sua materialidade, enquanto construto essencialmente ideológico, simbólico, histórico, sobretudo antropológico.

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  1. É claro que tais objetos possuem uma camada, por assim dizer, estética e que tal dimensão pode ser ainda entendida como «artística». Todavia, é necessário dizer que, nesse caso, os valores estéticos seriam determinados por um sistema de consumo e não pela expressão livre e intuitiva do criador da obra.
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